Setembro 19, 2022
Carta Aberta do Presidente da APAP ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa sobre o Projecto do Prolongamento da linha Vermelha-Sul do Metropolitano de Lisboa EPE
Exº. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Engº Carlos Moedas
Sr. Presidente
A mobilização da população em redor da estação de metro de Campo de Ourique, no âmbito do projecto do Prolongamento da linha Vermelha-Sul, entre São Sebastião e Alcântara, do Metropolitano de Lisboa EPE, (ML),é motivada pela profunda preocupação de vizinhos do bairro e de cidadãos atentos à cidade e ao seu espaço público, relativamente à proposta da estação prevista para o Jardim Teófilo Braga, mais conhecido por Jardim da Parada. O surgimento de movimentos cívicos com o apoio de ONG´s, transformou os encontros sobre o tema, em casa cheia.
Os motivos parecem mais que legítimos, partindo da discussão pública no âmbito da Avaliação do Impacto Ambiental a 26 de Maio, promovida pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e ML, onde era apresentada a solução da variante C3.4, como consumada, com base no estudo de viabilidade, o qual reflectia o melhor resultado global, segundo o proponente.
A proposta da variante cumpre com prazos, menor investimento e risco de construção, impactes minimizados, tudo dentro de um invólucro perfeito com base na análise custo-benefício.
Como se tem verificado e não somente nos projectos do ML, as avaliações ambientais quando se trata da afectação de Jardins e Parques públicos, são feitas com o aligeirar de alguns impactes, fazendo sobressair isoladamente alguns descritores, explicitamente branqueados, em lugar de uma visão integrada do conjunto, essencial na compreensão do valor do espaço na sua globalidade e das consequências reais deste tipo de projectos.
Sem entrar pela problemática da avaliação de impactes, é fundamental esclarecer à partida que estamos perante uma unidade de paisagem, constituída pelo perímetro do Jardim Teófilo Braga (Jardim da Parada), e não somente pelos 3 (três) exemplares arbóreos classificados de interesse público no interior do jardim, como o estudo pretende fazer recair a atenção, reduzindo aqueles, à matéria sensível do espaço em apreço.
As dimensões do Jardim Teófilo Braga são reduzidas, equivalentes à superfície dos quarteirões envolventes do bairro, habilmente desenhado pela equipa de Frederico Ressano Garcia, sobre o antigo campo da parada do Quartel, que se estendia para poente até às terras dos Sabidos, assinalando o jardim como o coração do bairro, que palpita de vida até hoje.
Actualmente, o que lá está, encontra-se protegido pelo passeio periférico acompanhado por uma cintura de Lódãos, assegurando o equilíbrio de uma natureza estável e madura. A paisagem do jardim possibilita singulares condições de conforto, atraindo pessoas e animais, sob copas de várias espessuras e tonalidades, que escondem vivências de muitas gerações. Neste ambiente romântico e preservado, encontramos o lago com água corrente, o coreto, os sanitários, a paragem de carros de praça, a esplanada, o jardim infantil e ao lado a premonitória estátua da Maria da Fonte.
O conjunto do jardim resulta de uma escala própria, e da agregação ordenada das várias peças, num corpo uno. Tocar num membro ou num sector e o corpo ficará definitivamente destruído. Acontece assim nas coisas vivas e belas, quase perfeitas.
Por isto, é de estranhar a naturalidade, com que o estudo e os especialistas complacentemente referem, a simples afectação de uma parte do jardim com a construção – veja-se bem, do poço da estação, dos elevadores, das escadas de emergência, e das grelhas de ventilação como é referido no EIA, como se tudo fosse recuperável ou reposicionável através da obra, escamoteando a destruição sumária e planeada do Jardim.
E para o fazer, é preciso também lembrar os profundos e irreversíveis impactos que a obra irá produzir durante a fase de estaleiro aberto, num tecido de enorme sensibilidade, ao ruído, às poeiras, e às vibrações, aos veículos pesados, independentemente das atenuantes técnicas previstas, não somente nos exemplares vegetais classificados, mas na globalidade da vegetação do jardim.
– Qual o valor da sombra de uma árvore num espaço público vivido pela população.
Pelo referido, não temos dúvida que a magnitude da obra face à escala do bairro e ao tipo de vivência do sítio, redunda numa brutal e cega acção, recaindo também sobre o edificado, das casas, das habitações e lojas, com o sacrifício do comércio não somente na orla do jardim, mas em grande parte do bairro. Nada disto é compensável com indemnizações, porque se trata de afectações irreversíveis, sem preço.
Num acto proactivo de cidadania, o movimento criado por vizinhos e cidadãos, perante a notícia do traçado da linha, veio desde o primeiro momento apontar entre outras, a alternativa que dista 300 metros do ponto previsto, para localização da futura estação. Trata-se de um sector em talude ligeiro, entre a Igreja do Santo Condestável e a Rua Saraiva de Carvalho, o qual nos parece constituir uma alternativa racional, talvez a única, face às contingências observadas.
Este local, apresenta clara aptidão, relativamente aos danos ambientais e paisagísticos, com profundas afectações sociais e urbanísticas que a variante actualmente em curso evidencia sobre o Jardim da Parada.
Curiosamente este ponto, segundo o estudo do ML, já tinha sido avaliado pelos técnicos. Pelos vistos prevalece ainda, bizarramente, o Jardim como centro da obra.
Esta alternativa, dispõe de boas acessibilidades, franca disponibilidade de espaço para construção das infraestruturas necessárias, área de operação de estaleiro facilitada, com reserva de distância às frentes construídas, diminuta presença de elementos vegetais de grande porte, proximidade com o terminal dos Prazeres da linha 25 e 28, disponibilidade de estacionamento rodoviário subterrâneo e à superfície, factores que entre outros, justificam à partida que esta alternativa, entre em análise técnica, como peça de referência, no prolongamento da linha vermelha.
No entanto o parecer da comissão de avaliação, do EIA, mantém os pressupostos sobre o estudo prévio da variante, sem qualquer menção à possibilidade de revisão daquele, o que nos faz pensar na intenção deliberada de evitar reavaliar ao nível do projecto novas propostas, deitando por terra a real utilidade da auscultação pública, dos debates com os cidadãos e do direito ao contraditório.
É unânime a consecução do plano de acessibilidade da cidade de Lisboa, onde se integra a rede de metro e o prolongamento da linha vermelha.
São projectos que têm por base contractos de financiamento ao abrigo do PRR, com escassos prazos de execução, relativamente ao normal andamento dos processos. Mas face aos contornos sensíveis do traçado e aos impactes gerados e identificados nos debates públicos, seria expectável uma nota explícita sobre a revisão do traçado da linha.
O dinheiro público deve ser aplicado em projectos que promovam e defendam a qualidade das nossas cidades, evitando desde logo processos que pela escassez de tempo resultem em opções erradas de projecto e respectivas sub-avaliações, implicando no presente caso a destruição de uma jóia do urbanismo da cidade, onde as medidas cautelares previstas sobre três exemplares arbóreos, deveriam recair obviamente sobre a globalidade do Jardim.
Como meio de transporte urbano, o metro envolve um compromisso cultural e ambiental, devendo por isso estar enquadrado nas políticas urbanas de gestão racional e sustentável da estrutura verde urbana que antecederam o dossier da descarbonização. Neste contexto seria improvável sacrificar superfícies ocupadas por áreas verdes, jardins, parques, alamedas e que constituem um direito público adquirido pelos habitantes e pela cidade.
Para evitar mais erros no futuro, a estrutura verde da cidade deverá ser analisada num quadro jurídico, que a salvaguarde no conjunto e nas partes como áreas de interesse público.
A título de exemplo lembro aqui dois casos relacionados com as últimas obras do metro dentro da cidade, nomeadamente a obra da estação do Marquês que resultou na aridez do quarteirão norte da Avenida de Liberdade, sem condições de crescimento arbóreo devido à escassez de espaço entre a laje de cobertura e a superfície; ou o belíssimo parque instalado na placa central da Av. Dr. Augusto de Castro transformado numa plantação de torres de ventilação com a construção da linha vermelha em Chelas. Ambos os casos constituem exemplos de lesa património da cidade com profundos impactes ambientais e paisagísticos que passaram ao lado do debate, possivelmente movidos pela análise custo-benefício sob a urgência do processo.
O traçado da actual variante do prolongamento da linha vermelha, nomeadamente para jusante, envolve também fortes impactes, sociais, urbanos e paisagísticos, em áreas habitacionais e patrimoniais de grande sensibilidade, tendo a estação terminal uma cota que obriga a um gabarito para o viaduto que atravessa o sector final do vale de Alcântara, que irá simplesmente apagar os conjuntos habitacionais e o património arquitectónico nas duas encostas. Este viaduto por si só, anula irremediavelmente a leitura do vale mais marcante da cidade.
Sr. Presidente, o esforço para condicionar e reavaliar estes processos deverá, pois, ser levado ao limite pelos responsáveis e decisores políticos, contrariando o entendimento de que tudo está definido e fechado. É um erro o que está em curso.
Lisboa nada ganha com esta variante, mesmo que isso signifique garantia de ratios passageiros/estação, ou economias de meios construtivos. A eficiência económica nem sempre é garantia de melhores opções.
As obras de excepcionalidade, também devem constituir uma forma participada da população reencontrar no seu espaço, uma oportunidade de busca e preservação da sua identidade, cultural, antropológica e biofísica. A humanização da cidade só pode ser feita através do conhecimento prévio do carácter do território e da paisagem.
Por tudo o que aqui foi referido, contamos com o presidente e o cidadão Carlos Moedas, e a sua capacidade para melhor observar e analisar este processo, de forma a se encontrar um melhor prolongamento da linha vermelha do metro, onde a mobilidade e os valores da paisagem possam coabitar naturalmente, abrindo novas formas de desenhar e viver a cidade.
Lisboa, 14 de Setembro de 2022
João Ceregeiro
Presidente da Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas (APAP)
Foto: Orlando Almeida @https://amensagem.pt/2022/06/22/estacao-de-metro-jardim-da-parada-campo-ourique-polemica/