Junho 28, 2023

Parecer APAP sobre a Proposta de Lei n.º 77/XV

REFORMA DOS LICENCIAMENTOS DO URBANISMO, ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO E INDÚSTRIA
PROPOSTA DE LEI N.º 77/XV

No passado mês de Abril, o Governo anunciou a intenção de promover uma reforma dos licenciamentos do Urbanismo, Ordenamento do Território e Indústria, integrada na lógica SIMPLEX, inserida numa tentativa de largo espectro legislativo, apontada à promoção de uma maior oferta habitacional e um mais amplo acesso a habitação digna e adequada aos rendimentos dos agregados familiares.

Nesse sentido, apresentou um conjunto de propostas legislativas, consubstanciadas pela Proposta de Lei n.º 77/XV, em que se incluem medidas para cada uma dessas áreas administrativas, tendencialmente no sentido da progressiva simplificação e racionalização, a par da digitalização, de diferentes processos administrativos que contribuem, em diferentes fases, para a dinâmica do sector da construção, estratégico para este tema.

Sem prejuízo da urgência da questão em apreço e da bondade da iniciativa legislativa em curso, mas porque construir no séc. XXI não é apenas justapor edifícios, importa lembrar que falar de habitação é também falar do espaço que acolhe essa edificação. Ou seja, é falar do tecido urbano que esta conforma, da paisagem em que se insere e, acima de tudo, da dignidade e qualidade de vida que irá proporcionar às populações que habitarão.

É falar da qualificação da Arquitectura e da Paisagem, em linha com a Política Nacional de Arquitectura e Paisagem, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 45/2015, de 7 de Julho.

Justamente porque a edificação e a urbanização são actividades com elevado e duradouro impacto sobre a paisagem e sobre os seus sistemas fundamentais, que garantem a qualidade de vida e a salvaguarda de pessoas e bens face ao risco associado a fenómenos naturais, devem ser encaradas com enorme sentido de responsabilidade, em todas as suas vertentes.

Tendo uma tal consciência estratégica em mente, o actual momento de urgência não pode resultar em pressas que precipitem o país para excessos de voluntarismo, muito menos semelhantes aos que, com maior destaque na década de 90 do século XX, deram lugar a booms de edificação para resposta imediata à especulação (e não só) em torno das zonas mais centrais das urbes, com expansão das periferias para acolhimento de franjas populacionais com menor capacidade financeira no acompanhamento das escaladas de preços, apoiadas pela banca – com os resultados conhecidos. O tecido urbano daí resultante, frequentemente desqualificado e insalubre, com problemas sociais e funcionais associados – com a mobilidade à cabeça, no encaixe dos movimentos pendulares – é um erro a não repetir.

Além do mais, a evolução demográfica portuguesa aconselha prudência na projecção do futuro da edificação, com os dados dos Censos de 2021 a apontarem para um decréscimo de cerca de 2,1% na população portuguesa face a 2011, e para um número superior a 723 mil fogos devolutos no país (equivalente a cerca de 15% do total edificado).

Também em termos de solos destinados à edificação, já em 1998, a Direcção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano identificava, no estudo “Planos Directores Municipais – Geo-referenciação de áreas urbanas, turísticas e industriais”, que a concretização do planeamento à data ratificado pelo poder central originaria, no mínimo, habitação para 14 milhões de pessoas. No limite, o solo classificado como urbano e urbanizável nessa altura, acolheria uma população de 30 milhões de pessoas, cerca do triplo da actualmente existente.

Em face da demografia e do planeamento em vigor, permanece totalmente por demonstrar qualquer escassez de solos para edificação em Portugal.

De igual modo, permanece por demonstrar a eficácia da resposta do mercado imobiliário, em termos da maior acessibilidade económica da construção nova. Não está demonstrado, em áreas onde efectivamente a construção progride, que o metro quadrado da nova edificação seja mais barato do que o metro quadrado da edificação consolidada, muito pelo contrário.

Não obstante, é inegável a necessidade e importância de uma resposta administrativa à actual conjuntura.

Disso consciente, a Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas, vem apresentar os seus contributos relativamente ao pacote de medidas apresentadas, centrando a sua análise em aspectos que considera estratégicos, sem prejuízo de outros igualmente importantes, mas não praticáveis, até pelo volume e complexidade das propostas legislativas apresentadas.

Para esse efeito, disponibiliza os contributos da Arquitectura Paisagista, a “arte de ordenar o espaço exterior em relação ao homem”, conforme postulado por Caldeira Cabral.

a) Princípios gerais

Previamente a questões do foro técnico, alguns princípios orientadores, deduzíveis da Proposta de Lei n.º 77/XV, merecem comentários genéricos:

  • O exercício do ordenamento do território e do urbanismo corresponde a um exercício de conciliação e ponderação de diferentes interesses e sectores que se articulam no desenho de um modelo territorial que espacializa políticas de desenvolvimento, expectavelmente Isolar a habitação de outras dimensões da sociedade, terá reflexos nefastos na coerência, integridade, funcionalidade, salubridade e competitividade das paisagens locais, regionais e nacionais. Mais ainda, é no sistema de gestão territorial que se resolve a conciliação dos diferentes níveis de interesse, e não por iniciativa legislativa;
  • O solo não é uma mera base de assentamento para a edificação. Constitui, por si só, todo um ecossistema, caracterizado por um intrincado conjunto de relações físicas e químicas complexas, entre factores bióticos e abióticos, que suporta a Assim, o seu entendimento como simples suporte de caboucos, ou espaço expectante à espera de ocupação edificada, é uma visão curta e redutora de um elemento fundamental ao equilíbrio e sustentabilidade das dinâmicas ecológicas;
  • Na mesma linha, os vazios urbanos não são apenas espaços expectantes até ao “momento redentor” que é a sua edificação. Desempenham um papel fundamental nas malhas urbanas, tanto ao nível ecológico (circulação de massas de ar, zonas de infiltração, entre outras funções) como ao nível psicológico, proporcionando desafogo dos volumes Dessa forma, urge reverter qualquer visão que aposte na sua completa colmatação por edificação desenquadrada de uma análise urbanística de contexto;
  • A consagração da conurbação como princípio orientador da ocupação do espaço e expansão das áreas urbanas representa um retrocesso de várias décadas em termos de políticas de ordenamento do território e O conceito de expansão de um uso, neste caso o urbano, por contacto limítrofe, sem consideração da aptidão paisagística do território que o irá suportar, é prenúncio de ineficácia desse uso, quando não mesmo de risco.
  • Como corolário dos pontos anteriores, enquanto o espaço rústico for visto como expectante e urbano potencial, e não como tecido de produtividade primária e de protecção a funções ecológicas estruturais da paisagem, permanecerá alvo de especulação e abandono, factor primordial da sua degradação.
  • O controlo prévio das operações que promovam a transformação urbanística do solo é um mecanismo indispensável à “harmonização entre todos os interesses conflituantes coenvolvidos nas acções de ocupação, uso e transformação daquele bem”1, para além de representar uma forma de repartição da responsabilidade ente os vários agentes intervenientes em tais processos. Subsistem sérias dúvidas sobre as alterações pretendidas a esse nível, com destaque para o seu impacto sobre o prestígio do poder local. Assumir que um termo de responsabilidade, sem prejuízo da qualidade – que é muita – dos profissionais do sector, é mais idóneo e credível que a intervenção e processos dos corpos técnicos e políticos dos Municípios, poderá representar um ónus gravoso sobre a confiança da opinião pública naquele que constitui um dos pilares da democracia de proximidade, conquistado no pós-25 de Abril. O papel dos Municípios e das associações profissionais é, naturalmente num quadro de rigorosa responsabilidade, transparência e equidade, fundamental para que o processo da edificação, desde a fase de projecto até à fase de obra, resulte em verdadeira urbanização, com qualificação e dignificação do tecido construído e da vida das comunidades que o habitam, em respeito e equilíbrio com os sistemas fundamentais da paisagem e os ciclos que através deles se processam, garantindo salubridade e segurança;
  • Em linha similar, a proposta de proibição expressa da emissão de pareceres escritos por parte das entidades, em sede de conferências procedimentais, parece carecer de cabal enquadramento e esclarecimento, na medida em que se afigura uma ingerência no normal funcionamento das instituições. Especialmente num quadro em que os representantes das entidades passam a ter o equivalente a uma delegação de competências do poder de representação e vínculo, na medida em que a sua pronúncia na conferência, lavrada em acta, se torna

Seguidamente, apresentam-se contributos incidindo sobre propostas de alteração legislativas concretas

b) Alterações ao Regime Jurídico da Urbanização e Edificação

Das diversas propostas de alteração a este diploma, opta-se por destacar, pela sua relevância estratégica e influência sobre outros regimes jurídicos:

Art.º 43.º – o princípio constante da alteração proposta à redacção do número 1 deste artigo desvirtua o espírito original da norma, de obrigação de reserva de uma quota do imóvel ou imóveis para outros usos de utilização colectiva, tendencialmente pública (recorde-se que a utilização exclusivamente privativa implica compensação em numerário ou em espécie), criando um tecido urbano dotado do conjunto de valências que verdadeiramente o conformam. Prever a possibilidade de estes espaços serem consagrados a edificação implica, sem prejuízo do interesse público que persegue, uma densificação desproporcional da operação urbanística. Complementarmente, é previsível uma tendência de ocupação de áreas de cedência (previstas no

Art.º 44.º do RJUE) para equipamentos expectantes ou não concretizadas, sem que a isso corresponda um novo pensamento urbanístico integrado, mas antes uma solução de recurso, comprometendo outras áreas estratégicas.

c) Alterações à Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo

 Numa análise geral da proposta de alteração a este regime jurídico, transpira o princípio vertido na proposta de alteração ao n.º 1 do Art.º 43.º do RJUE, que, pelas razões anteriormente aludidas, se afigura como factor de desequilíbrio nas proporções do espaço urbano resultante da sua aplicação, por desqualificação e densificação excessiva.

Numa análise mais específica, destacam-se os seguintes aspectos:

  • Art.º 10.º As alterações propostas à redacção deste artigo recuperam, na prática, o conceito de solo urbanizável, representando um retrocesso relativamente à última alteração legislativa. Sem conceder, entende-se que, existindo manifesto interesse e necessidade de alteração à redacção, se deve adoptar a proposta avançada pela Ad Urbem – Associação para o Desenvolvimento do Direito do Urbanismo e da Construção, em sede do seu parecer, com o complemento a seguir indicado (negrito e sublinhado):

«Solo urbano», o que está total ou parcialmente urbanizado ou edificado e, como tal, afeto em plano territorial à urbanização ou à edificação, podendo incluir as áreas que se mostrem indispensáveis para a melhoria da estruturação urbana, para a instalação de atividades de natureza industrial, de armazenagem ou logística e dos respetivos serviços de apoio, ou para a construção de habitação pública ou a custos controlados, desde que não integradas na Reserva Ecológica Nacional, na Reserva Agrícola Nacional ou na Estrutura Ecológica Municipal

  • Art.º 10.º-A Em linha com o anterior, o conceito inerente à proposta de aditamento à LBGPPSOTU, plasmado no novel Art.º 10.º-A, para além de enfermar de uma recuperação do “urbanizável”, normaliza e inclusivamente premeia a inacção de todos os Municípios que, por opção ou inadequado investimento, não procederam à conformação dos seus Planos Directores Municipais relativamente à última alteração legislativa. Consequentemente, entende-se que este aditamento não deve concretizar-se.

d) Alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial

Novamente, uma análise global desta secção da proposta de alteração legislativa, encontra-se plasmado o princípio constante na proposta de alteração ao n.º 1 do Art.º 43.º do RJUE, ampliando aqui, em matéria dos IGT, os seus potenciais efeitos nefastos.

No entanto, a proposta mais relevante, no entendimento da APAP, é aquela que resulta da admissão da reclassificação do solo, fora da esfera dos planos territoriais.

Desde logo, não resulta clara a articulação desta norma com a reserva de plano, relativamente à ocupação do solo, que decorre no n.º 4 do Art.º 65.º da Constituição da República Portuguesa, e que remete para a já aludida conciliação de interesses em sede do sistema de gestão territorial, e não da iniciativa legislativa. Se por mais nada, a dúvida sobre algo estruturalmente tão importante, aconselharia severa aplicação do princípio da precaução, sob a forma de mais apurada reflexão, anterior a qualquer proposta.

Sem conceder, e resolvidas quaisquer dúvidas de constitucionalidade, a reclassificação ad hoc de solos, para resposta imediatista – que não imediata – a um problema actual mas que não é isolado, não pode ocorrer nos termos propostos.

Assim, e num espírito positivo de contributo para uma solução, desde que expurgados conflitos legais, entende-se que a redacção do novo artigo proposto, 72.º-A, deve ser revista, nos seguintes termos (alteração propostas a negrito e sublinhado):

  • Art.º 72.º-A, n.º 1, alínea b) “Não se localize em áreas sensíveis, Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional ou Estrutura Ecológica Municipal.”

Complementarmente, deve ser criado um novo artigo, que densifique alguns critérios de elegibilidade para a reclassificação, consonantes com a excepcionalidade da sua circunstância e objectivo, bem como do significativo investimento territorial que representa:

Art.º 72.º-C Critérios de reclassificação para solo urbano para uso habitacional

  1.   A reclassificação do solo rústico para solo urbano apenas pode ser promovida por Municípios em que, cumulativamente:
      1. o número de fogos devolutos, registado pelo exercício censitário mais recente ou por estudo sectorial, não exceda os 20% do total dos fogos existentes nesse Município;
      2. a tendência demográfica, atestada pelos dois últimos exercícios censitários, seja
  2. O solo reclassificado ao abrigo do anterior artigo não pode apresentar um índice de impermeabilização superior a 0,6.
  3.   Nas operações urbanísticas realizadas em solo reclassificado ao abrigo do artigo anterior:
    1. o arvoredo presente, isolado ou em conjunto, é equiparado a arvoredo urbano, nos termos e para os efeitos previstos na Lei º 59/2021, de 18 de Agosto, que estabelece o regime jurídico de gestão do arvoredo urbano;
    2. não poderão ser abatidas árvores com perímetro à altura do peito igual ou superior a 18 20 centímetros;
    3. a reposição de exemplares abatidos, de bitola obrigatoriamente inferior à da alínea anterior, processar-se-á na razão de cinco novos exemplares por cada um abatido, devendo apresentar características similares, em termos de porte e conformação;
    4. serão observadas as cercéas das áreas limítrofes, em articulação com os sistemas de

 3 A edificação erigida em solo reclassificado ao abrigo do anterior artigo:

  1. Não pode ser alienada a fundos de investimento imobiliário;
  2. Após a primeira venda, não pode ser alienada durante um prazo mínimo de 20 anos, salvo casos de direito sucessório ou insolvência pessoal;
  3. Não pode ser alvo de alteração de uso, salvo por reconhecido interesse público, durante um prazo mínimo de 20

 

Sem prejuízo de outros que oportunamente se entendam convenientes, estes são os contributos da Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas.

 

Em nome da Direcção da APAP,

João Ceregeiro, Carlos Correia Dias e Gonçalo Duarte Gomes

22 de Junho de 2023