Novembro 2, 2023
Ordem do Dia | Cheias e inundações urbanas: prevenção, proteção e aprendizagem
Cheias e inundações urbanas: prevenção, proteção e aprendizagem
Maria da Graça Saraiva
Arquiteta Paisagista, Professora Associada aposentada, UL
As grandes chuvadas ocorridas no final de 2022 vieram trazer, de novo, às notícias dos jornais e às zonas urbanas habitualmente inundáveis, os efeitos de graves cheias e inundações, causando elevadíssimos prejuízos, diretos e indiretos, e infelizmente a perda de uma vida humana.
A gravidade dos eventos e o aumento da sua frequência tem sido associada aos efeitos das alterações climáticas, cujos cenários apontam, nas regiões de influência mediterrânica, para a ocorrência de uma maior intensidade e frequência destes eventos extremos. Neste contexto, dado que as cheias e inundações não serão nunca totalmente evitáveis, haverá que reforçar a prevenção e a proteção de pessoas e bens e, sobretudo, a aprendizagem com os erros do passado e a procura de novas formas de adaptação e resiliência. Esta aprendizagem terá que refletir‑se em estratégias e medidas baseadas em novos paradigmas urbanísticos e ecológicos, associando estas abordagens a conceções integradas.
Cheias e inundações são muitas vezes consideradas como sinónimos, embora nem sempre o sejam. De acordo com Ramos (2013), as cheias provocam inundações, mas nem todas as inundações são devidas a cheias. As cheias decorrem do transbordamento de um curso de água, inundando os terrenos adjacentes. As inundações podem ser devidas a várias características (topográficas, costeiras, etc.) e, em meio urbano, resultam muitas vezes da alteração dos processos de escoamento hídrico pela urbanização e impermeabilização, com sobrecarga e insuficiência dos sistemas artificiais de drenagem. Nesse contexto, questões como a concentração no tempo e no espaço de elevados afluxos hídricos, decorrentes de eventos pluviométricos de grande torrencialidade, geram elevados caudais com deficiente escoamento e impossibilidade de infiltração, ocupando zonas baixas anteriormente associadas aos leitos de inundação.
A intensificação dos efeitos das cheias e inundações em zonas urbanas, cujo desenvolvimento foi conduzido à revelia da consideração dos processos de escoamento natural, impermeabilizando vales e leitos de cheia, cobrindo ribeiras e linhas de água, acelerando o escoamento superficial das águas, é já amplamente identificado e reconhecido tecnicamente e pela opinião pública. A ocorrência repetida e frequente de cheias em várias situações urbanas, nomeadamente na Área Metropolitana de Lisboa, demonstra o acumular de situações gravosas que ocorreram ao longo das últimas décadas, revelando sérias disfunções no ordenamento desses territórios.
As infelizmente célebres e catastróficas cheias nesta região, em novembro de 1967, em que morreram várias centenas de pessoas, num número ainda não totalmente apurado, permanecem ainda na memória coletiva dos mais velhos. Na época, a participação dos estudantes como voluntários para os trabalhos de apoio às populações afetadas teve um papel relevante para a perceção da dimensão da tragédia, que foi, ao tempo, abafada pelas autoridades. Recordo que participei, então, nas equipas que estiveram em Algés a despejar caves a balde. Passados mais de 50 anos, faleceu infelizmente uma pessoa habitando
uma cave em Algés, quando todas as recomendações apontam para não ser permitida a habitação em caves nas zonas inundáveis.
É a impermeabilização intensiva dos solos das bacias hidrográficas ou de drenagem urbanas, associada a intensas quedas pluviométricas, que gera as cheias rápidas ou repentinas e as inundações em meio urbano, em que os tempos de concentração são muito curtos, e onde existem diversos pontos críticos de escoamento, como obstruções e troços canalizados e cobertos. Acrescem, ainda, as dificuldades de escoamento das redes subterrâneas, devido à coincidência com a subida das marés.
São também conhecidas e divulgadas as zonas inundáveis e leitos de cheia, atualmente identificadas nos instrumentos de gestão territorial (IGT) e sujeitas a regulamentação, mas, pelos vistos, com pouca eficácia. A sua delimitação é efetuada através de figuras como a Reserva Ecológica Municipal (REN), a Estrutura Ecológica e, nalguns casos, as Zonas Adjacentes, como as que foram estabelecidas nos finais da década de 80 para algumas ribeiras da região de Lisboa (rio Jamor, ribeiras da Lage, das Vinhas e de Colares), com as consequentes restrições regulamentares.
Nestas situações, deveriam ser amplamente discutidas as interações com o ordenamento do território, com as condições de impermeabilização e edificação nas zonas inundáveis, com as alterações da rede de drenagem natural e construída, que se refletem na intensificação de cheias e inundações, com o consequente acréscimo da vulnerabilidade de pessoas e bens. Por outro lado, a manutenção de condições de permeabilidade dos solos e a instalação de zonas naturalizadas contribui para a redução dos riscos e acréscimo da qualidade ecológica e ambiental das zonas inundáveis. Assim, a tomada de decisões urbanísticas reflete‑se nas alterações de uso dos solos, podendo agravar os riscos de cheias e inundações, ou, por outro lado, contribuir para uma retenção e infiltração das águas, reduzindo a vulnerabilidade e incrementando a melhoria dos habitats.
A legislação portuguesa sobre defesa e controle de cheias é bastante antiga, remontando aos finais do século xix. Nas décadas iniciais, assumiu um forte pendor estrutural, baseado em obras intensivas de regularização hidráulica. Só nos finais do século xx passou a integrar medidas não‑estruturais, embora de forma sectorial e pouco integrada. A figura de Zona Adjacente para proteção das áreas inundáveis foi criada após as inundações de 1967 (Decreto‑Lei n.o 468/71 de 5 de novembro), mas só foi aplicada a menos de uma dezena de troços ou cursos de água, em face de resistências formais ou informais de decisores, técnicos ou promotores imobiliários.
No início do séc. XXI a Diretiva Quadro da Água e a sua transposição para a legislação nacional através da Lei da Água (Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro) veio unificar o regime de gestão de recursos hídricos e introduzir dimensões ligadas à qualidade ecológica das massas de água e ecossistemas associados. No entanto, as questões das cheias não foram devidamente enquadradas, o que levou à publicação da Diretiva 2007/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à avaliação e gestão dos riscos de inundações, transposta pelo Decreto‑Lei n.º 115/2010, de 22 de outubro. Esta legislação estabelece a criação dos Planos de Gestão dos Riscos de Inundação (PGRI), identificando zonas de risco e definindo estratégias para o desenvolvimento de medidas visando a diminuição da vulnerabilidade das inundações, nas várias regiões hidrográficas do país. No entanto, as inundações urbanas não foram consideradas no primeiro ciclo de planeamento, dirigido para as cheias de origem fluvial à escala regional. Deste modo, as cheias e inundações urbanas, que ocorrem em pequenas bacias hidrográficas, não foram objeto desta metodologia, mantendo‑se na escala do planeamento municipal, através dos IGT, portanto com um enfoque desligado da integração na unidade da bacia hidrográfica, dado que os limites concelhios não se articulam com essas unidades biofísicas. Neste contexto, é necessário considerar as atuações não só ao nível nos troços críticos, mas abordando a escala da bacia hidrográfica ou de drenagem, o que remete para uma ótica supramunicipal.
Medidas de prevenção e de proteção contra cheias
Para a redução dos prejuízos e impactes das cheias é tradicional a consideração de dois tipos de medidas – as estruturais, envolvendo formas de intervenção através de estruturas que visam a redução de um ou vários parâmetros que caracterizam as cheias, como a área inundável, o caudal e a altura de cheia, e as não‑estruturais, envolvendo ações de carácter preventivo ou de ajustamento que têm por objectivo a redução do risco através da modificação da suscetibilidade aos prejuízos das atividades sócio‑económicas nas áreas inundáveis. As medidas não estruturais abrangem um vasto leque de soluções compreendendo zonamentos e regulamentos dos usos do solo em zonas de risco, códigos de construção e manutenção de edifícios e infraestruturas, programas de aquisição e gestão de solos, que se relacionam estreitamente com o ordenamento do território e das zonas de risco. Para além dessas, integram ainda os sistemas de previsão e aviso, os sistemas de emergência e de medidas de recuperação pós‑catástrofe, as ações de informação públicas, entre outras (Saraiva,1987).
A abordagem ao problema das cheias evoluiu de um modelo baseado principalmente em medidas estruturais de controlo de cheias para uma abordagem de gestão dos riscos de cheias e inundações, integrando medidas estruturais e não estruturais de âmbito diversificado e complementar, preocupações ecológicas e de reconhecimento da integridade dos processos fluviais e a interface com as populações afetadas. Compreende assim também a avaliação da perceção dos riscos, a informação e o envolvimento públicos e as ações de emergência e pós recuperação.
É necessária uma abordagem multi‑institucional e multi‑escalas, que requer uma forte integração entre diversos domínios, como o ordenamento do território, o planeamento e desenho urbanístico, das infraestruturas, ‘verdes’ e cinzentas’, o planeamento de emergência, a proteção civil, os sistemas de aviso e a informação e o envolvimento das populações e residentes.
No entanto, verificam‑se geralmente grandes dificuldades de interação entre esses domínios, devido a vários fatores, como sejam, por exemplo, uma tendência tradicional de sectorialização, as dificuldades na implementação adequada dos planos, a pouca sensibilidade por parte do público em geral face a problemas de ordenamento do uso do solo, bem como os interesses fundiários e imobiliários que inibem ou se opõem à aceitação de ónus ou restrições nessa matéria.
O esquema apresentado na figura 1 pretende esquematizar os diversos domínios e possíveis medidas compagináveis com o ‘ciclo de gestão dos riscos de cheias e inundações’, que parte do conceito da ocorrência das cheias como um processo, e não como eventos isolados no tempo e no espaço. Distingue assim 4 fases: i) a caracterização dos riscos (avaliação e mapeamento); ii) as estratégias de mitigação, que incluem as medidas de proteção e de prevenção; iii) a gestão de emergência, que envolve a preparação e a resposta; iv) a recuperação, a curto e longo prazo (Serra‑Llobet et al., 2018).
Figura 1 – O ciclo de gestão dos riscos de cheias e inundações
Adaptado de Serra-Llobet et al., 2018
A articulação proposta requer uma visão e organização multi-institucional e integrada nos vários domínios referidos, assente numa aprendizagem dos erros cometidos no passado e na necessidade de comunicação e adaptação aos riscos, na sociedade em geral e entre as várias entidades e atores na comunidade urbana.
Água em excesso, água em falta
A gestão do ciclo urbano das águas pluviais, integrando as questões das cheias e inundações, tem vindo a integrar novas perspetivas. Da eliminação rápida das águas pluviais aos sistemas de drenagem, como premissa de projeto, evoluiu-se no sentido do reconhecimento da importância da retenção e infiltração hídricas no solo, como forma de retardar o escoamento e potenciar o armazenamento hídrico do solo, essencial para a saúde dos ecossistemas e habitats.
Deste modo, têm sido desenvolvidas propostas no sentido de potenciar o ciclo natural da água na cidade, adaptando o seu desenho às condicionantes das áreas húmidas, como ribeiras, linhas de água, leitos de cheia, zonas inundáveis e vales fluviais. Soluções como a reabilitação e restauro fluvial, o «desenterramento » de troços cobertos, os usos adequados às condições de permeabilidade do solo, as bacias de retenção, as soluções de controlo na origem, entre outras, constituem medidas estruturais, mas de base natural, que devem ser analisadas e integradas na proteção e prevenção das cheias, como formas de mitigação e adaptação face a riscos naturais e antrópicos, que podem ser agravados pelos efeitos das alterações climáticas. O conceito de Infraestruturas Verdes, ou também chamadas Verdes e Azuis, programado em consonância com as bacias hidrográficas ou de drenagem, permite a integração espacial e funcional deste tipo de atuações de uma forma integrada. Outros conceitos semelhantes são os que estão subjacentes a designações que têm surgido recentemente, como «cidades porosas», ou «cidades esponja», difíceis de por em prática, mas que podem ser inspiradores para abordagens alternativas e para a comunicação com o público.
Têm sido desenvolvidos nas últimas décadas, na Área Metropolitana de Lisboa, algumas realizações que ilustram estes princípios, nomeadamente parques e espaços públicos associados a linhas de água que integram, para além da valorização social e paisagística, soluções de retardamento do afluxo de águas pluviais que mostraram já eficácia na minimização de cheias e inundações em eventos recentes. Importa dar-lhes continuidade e passar das atuações em troços para programas de reabilitação dos corredores fluviais no contexto das bacias hidrográficas. Também o anunciado Plano de Drenagem de Lisboa, eminentemente estrutural, deveria ser complementado e articulado com medidas de base natural, valorizando os espaços naturalizados e o reconhecimento pelo público do importante papel da água na cidade.
Aprendizagem e comunicação – um processo necessário
O processo de adaptação aos riscos naturais e antrópicos é fulcral no quadro das incertezas climáticas do futuro. Lidar com as águas pluviais em excesso requer uma alteração das atitudes, passando de encará-las não como um problema, mas como um recurso a gerir, conservar, armazenar, valorizar, face a situações de carência e seca que irremediavelmente se seguirão. Revisitar as técnicas tradicionais do contexto mediterrânico, como cisternas, poços absorventes, canais, entre outros, pode ser um caminho inspirador, adaptando-as a novos contextos e circunstâncias.
A aprendizagem com os eventos passados será um requisito importante, no conhecimento das áreas e níveis atingidos, usos do solo, tipologias de edificação, população e atividades económicas afetadas, prejuízos ocorridos, ineficácias dos sistemas de aviso e emergência. O conhecimento da perceção das pessoas sobre os perigos, suas causas e efeitos, medidas de mitigação e comportamentos a adotar em caso de emergência é um fator essencial na comunicação do risco. A complexidade dos fatores envolvidos neste tipo de processos é de tal dimensão que a avaliação dos aspetos negativos e positivos ocorridos é fundamental para o ajustamento do ciclo de gestão dos riscos, tal como apresentado na figura 1.
A comunicação eficaz e clara entre decisores, instituições de aviso e emergência, técnicos, operacionais e as populações é condição essencial para uma adequação de comportamentos resilientes.
Bibliografia
Llobet, A.; Kondolf, G.M.; Schaefer, K. & Nicholson, S. (2018). Managing Flood Risk. Innovative approaches from big floodplaisn Rivers and urban streams.
Palgrave, Macmillan, https://doi.org/10.1007/978-3-319-71673-2 Ramos, C. (2013). Perigos naturais devidos a causas meteorológicas: o caso das cheias e inundações.https://recil.ensinolusofona.pt/bitstream/10437/5308/1/PERIGOS%20NATURAIS%20DEVIDOS%20A%20CAUSAS%20METEOROLÓGICAS_O%20CASO%20DAS%20CHEIAS%20E.pdf
Saraiva, M.G. (1987). A defesa contra cheias e a sua inserção no Ordenamento do Território. Área Metropolitana de Lisboa. Dissertação de Mestrado em Planeamento Regional e Urbano, Universidade Técnica de Lisboa.