Maio 25, 2021

Carta Aberta sobre a Manutenção do Espaço Público e a Obra de Gonçalo Ribeiro Telles

Ex.mos Senhores,

No dia 25 de Maio, Gonçalo Ribeiro Telles faria 99 anos. Deixou-nos em Novembro do ano passado. Por detrás fica o humanista, que se afirmou por um mundo mais equilibrado entre a obra do homem e a natureza, na compreensão dos valores da paisagem, da sua diversidade, da sua beleza e no empenho na sua recuperação e preservação, como forma de se chegar a uma sociedade mais justa, menos fracturada, mais segura e saudável.

Pela obra da sua vida, em 2013, veio a receber o prémio Geoffrey Jellicoe, considerado o prémio Nobel da profissão de Arquitecto Paisagista.

Muito do corpo teórico que ensinou na universidade, na política e no projecto, coincide actualmente com os fundamentos de um modelo proposto pela comissão europeia para o território, como soluções de futuro e num entendimento global.

A cidade de Lisboa, foi a menina dos seus olhos. Sobre a cidade ensaiou e propôs soluções urbanísticas inovadoras, visionárias, as quais constituem actualmente princípios urbanísticos, como referências a implementar noutros locais.

A sua atenção na cidade também foi acompanhada por projectos e obras, como funcionário camarário e profissional liberal.

Para ele, a dignificação das pessoas, passava pelo espaço onde elas vivem, do espaço público onde as pessoas se encontram e se reencontram a si mesmas. Aqui entra a condição de uma escala, de uma cultura de proximidade, de uma identidade, construída social e culturalmente.

Daí que Gonçalo Ribeiro Telles afirmasse sempre a necessidade da qualidade do espaço público como o espaço de comunicação, de cidadania da nossa democracia, reflexo contemporâneo da cidade clássica grega, revelador dos valores da liberdade.

Nas últimas décadas, e na esteira do plano estratégico de Lisboa de 1992, o espaço público passou também para o centro das atenções dos decisores, sobretudo em consequência de investimentos em novas áreas para a cidade ou na regeneração e reconversão de áreas degradadas ou periféricas.

Contudo, o surgimento de mais equipamentos e espaços livres na cidade e de uma oferta maior de zonas verdes, não significou a garantia de qualidade desses espaços, muito pelo contrário, uma vez que a capacidade instalada para a sua manutenção foi desinstalada, coincidindo no tempo com a desafectação dos serviços camarários e das equipas responsáveis pelas manutenções, passando o processo a reger-se por concursos e os serviços fornecidos por entidade externa.

Por muito que um caderno de encargos seja abrangente, dificilmente substitui o papel de um responsável residente na manutenção de uma determinada área, ou um efectivo acompanhamento técnico atempado e criterioso. Essa relação directa entre o técnico e quem executa veio-se a perder, e com isso muito do conhecimento adquirido sobre as entidades que compõem o espaço público, envolvendo recursos locais, infraestruturas, materiais, equipamento, vegetação, o contorno urbano, os utilizadores e sua mobilidade.

Mais recentemente e sempre em nome da flexibilidade da administração, da promoção da desconcentração, e da coesão territorial, entre os órgãos do município e os órgãos da freguesia, procedeu-se à delegação de competências que envolveu entre outros, os serviços de manutenção do espaço exterior.

Se as coisas não estavam bem, teria sido uma boa oportunidade de passar melhor o testemunho, introduzindo formação e meios sobre a necessidade de se conhecer a realidade do espaço público e da sua manutenção.

O processo contou sobretudo com as verbas envolvidas, e até que houvesse consciência por parte dos novos responsáveis de como gerir o património e actuar racionalmente, muitas foram as plantações realizadas sem qualquer nexo, limpezas aleatórias, podas violentas e remoções discricionárias de arvoredo, como se o trabalho efectivo fosse lenha produzida, possivelmente proporcional ao simples alívio de indeminizações por danos causados pela vegetação.

Há casos em que gestão do espaço público ou a sua ausência, têm contornos ainda mais graves, nomeadamente quando recaem sobre obras de autor, sejam em espaços construídos recentemente ou em recintos mais maduros e estabilizados, nomeadamente dentro de áreas de protecção patrimonial (ZEP), com destaque para os de Belém.

É difícil entender como a estrutura verde que agrega a capela de S. Jerónimo, integrada pelos Jardins Ducla Soares e pela Praça de Itália, projectados por Gonçalo Ribeiro Telles em finais dos anos 50, assim como as Praças de Diu, Damão e Malaca, que representam uma área considerável do bairro do Restelo, se encontram próximas do abandono com sistemas de drenagem danificados, áreas pavimentadas degradadas, escadas e muros destruídos, invasão de vegetação, onde a manutenção está limitada à limpeza urbana.

A encosta do Restelo, resulta de um projecto de ordenamento onde Gonçalo Ribeiro Telles lutou pela salvaguarda da encosta, evitando a continuação da avenida triunfal da Torre de Belém e a demolição daquela capela da cerca dos Jerónimos.

Ao longo da encosta conseguiu criar um sistema de acessibilidades, em articulação com um estudo de vistas baseado na construção de campos de visão e enfiamentos perspécticos. O crescimento não impede que ela possa ser modelada, estabelecendo movimentos de luz e sombra, que se trabalhe o movimento com a deslocação do visitante, como refere em “Utopia com os pés na terra” – Quero que uma pessoa percorra este espaço descobrindo sempre. A luz circula de acordo com os obstáculos que lhe pusermos… O tempo é um factor determinante no desenho. A concepção nunca acaba.

Para além da dimensão das suas palavras, da sua humanidade, também expressa claramente a necessidade do desafio da manutenção, da percepção de uma realidade enquanto espaço e natureza, dessa comunicação aberta, mas não respondida.

Neste dia especial evocando o aniversário de Gonçalo Ribeiro Telles, é nosso dever puxar pela qualidade no planeamento do espaço público, na sua relação com a gestão do território, do conhecimento dos valores da paisagem, do ensinamento dos elementos essenciais do espaço exterior e da sua importância neste chão comum de encontro com a natureza.

Parabéns Professor Gonçalo Ribeiro Telles, estamos cá para com toda a nossa energia para continuar a soprar as velas e levar a Arquitectura Paisagista mais longe.

Em nome da Direcção da APAP, e com os melhores cumprimentos,

João Ceregeiro, Presidente

 

(Carta enviada ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ao Director-Geral da Direção-Geral do Património Cultural e aos membros da Conselho Directivo da Associação Nacional de Freguesias, no dia 25 de Maio de 2021)